Qualquer um de nós, ao entrar numa “feira medieval” — essa invenção que se tornou moda no decorrer na última década, invadindo qualquer localidade onde haja um castelo ou algo que se lhe assemelhe — não pode ficar indiferente a um dos seus ingredientes obrigatórios, a “música medieval” que os músicos ambulantes despejam, rua acima rua abaixo, exibindo os seus “medievais” trajes de couro e serapilheira, soprando nas suas gaitas de formas bizarras, acompanhados por tambores que soltam frenéticos ritmos de sabor “techno”, numa ambiência “gótico-céltica”. Há também a alternativa “árabe”, com darbukas de alumínio e pele sintética, um par de mizmar, karkabas, riq, bendir, tabla… Num e noutro caso o efeito produzido tem o seu quê de bizarro, suficientemente estranho para nos remeter para uma imaginária época “medieval”— vá-se lá saber o que isso é… Quanto ao reportório, é tudo aquilo que se adapte a este imaginário: melodias “celtas”, galegas, trasmontanas ou “covers” das fantasiosas adaptações de bandas de “medieval rock” e afins, como os Corvus Corax ou Dead Can Dance. E, de vez em quando, lá aparece no meio de tudo isto uma melodia de origem verdadeiramente medieval: uma ou outra “Cantiga de Santa Maria” — sempre as mesmas, servidas de todas as maneiras possíveis.
A redescoberta da música do período medieval começou há várias décadas, fruto das aturadas pesquisas de músicos e musicólogos que nos foram revelando os segredos guardados nos escassos e enigmáticos documentos existentes. Do canto gregoriano às Cantigas de Santa Maria e ao Codex Calixtinus, da música dos troubadours e trouvères aos Minnesänger, aos Carmina Burana, às danças instrumentais, aos preciosos manuscritos, milagrosamente preservados, das Cantigas de Martim Codax e de D. Dinis, ao reportório da Ars Antiqua e da Ars Nova, toda uma imensidão de documentos foi estudada e dada a conhecer por estudiosos como Pierre Aubry, Solange Corbin, Hendrik van der Werf, Willi Apel, Higinio Anglès, Christopher Page, John Stevens, José Augusto Alegria, Manuel Pedro Ferreira, entre muitos outros.
Por outro lado várias gerações de músicos, apoiados nestes estudos, na análise de práticas instrumentais de algumas regiões da Europa e Norte de África e na exploração de instrumentos musicais produzidos por construtores que se juntam ao movimento, começam a dar vida a este novo mundo musical. Dos pioneiros Arnold Dolmetsch ou David Munrow a René Clemencic, Thomas Binkley, James Tyler, Brigitte Lesne, Gregorio Paniagua, Jordi Savall, Christophe Deslignes, todos eles foram progressivamente construindo uma abordagem, ao mesmo tempo histórica e dinâmica, deste reportório, criando realizações musicais de grande qualidade estética. Em Portugal o movimento foi sendo acompanhado desde os anos 70 do século passado por grupos como os Segréis de Lisboa, La Batalla, Vozes Alfonsinas e Mediae Vox Ensemble, entre outros.
Entre esta realidade e a das “feiras medievais” há uma diferença abismal: a que separa uma prática musical baseada no estudo e na reflexão sobre os documentos históricos e outra completamente inventada, um pouco à semelhança que faziam os músicos românticos quando pretendiam retratar ambientes exóticos: veja-se como Verdi, na Aïda, como bem notou Claudio Sartori, sugere uma ambiência egípcia através de efeitos musicais que provêm muito mais da sua própria imaginação do que do conhecimento objetivo da música daquele país.
Não se trata aqui de opor simplesmente uma à outra realidade. As subtilezas das interpretações “historicamente informadas” dão-se bem nas salas de concerto, mas dificilmente suportam o ambiente ruidoso e popular das feiras. No entanto, o grupo português La Batalla realizou concertos integrados em feiras medievais, em que a única concessão foi a utilização de amplificação sonora, obtendo um grau de eficácia equivalente aos realizados em espaços convencionais. E nós próprios temos por experiência que é possível integrar, desde que com o devido enquadramento, momentos de concerto mais recolhidos nos programas das feiras medievais. Em França, os músicos do conceituado grupo Amadis dirigem também coletivos de música e dança vocacionados para as feiras. O ambiente um pouco mais “leve” destas realizações pensadas para o ambiente de rua obedece ao mesmo rigor histórico na utilização do reportório e dos instrumentos, e apoia-se em investigações pioneiras sobre a dança medieval.
Na reconstituição histórica da música, a autenticidade absoluta não existe. Como já dizia Nikolaus Harnoncourt, quando uma determinada prática musical é interrompida há sempre alguma coisa que se perde irremediavelmente. Imagine-se o fado: se, por qualquer razão, ele caísse hoje em desuso e não restasse nenhuma gravação, como seria possível, daqui a cem anos, voltar a revivê-lo apenas com base nas pautas musicais, nas fotografias, nas descrições e mesmo nos instrumentos que porventura tivessem sobrevivido? Todos percebemos que há um estilo interpretativo do fado que não se pode descrever e que só se mantém pela transmissão direta de geração para geração.
Então porquê pugnar pela abordagem historicamente informada da música medieval? Porque, apesar de tudo, se aproximará com muito mais probabilidade daquilo que o homem medieval terá ouvido. Todos aceitamos um certo grau de teatralidade em todos os aspetos das reconstituições históricas, mas naturalmente gostamos de ser o menos “enganados” possível. E porque, além disso e talvez em primeiro lugar, o trabalho de várias gerações de estudiosos e músicos têm conduzido a realizações musicais de inquestionável valor artístico, e não necessariamente elitista: lembremo-nos das lotações completamente esgotadas nos concertos dos saudosos Festivais de Música Antiga de Óbidos, para falar de uma realidade simultaneamente próxima de nós e distante dos centros elitistas da música.
Pode então levantar-se a questão: deverá a interpretação da música medieval, mesmo em atividades de carácter mais popular como as feiras, estar reservada aos pouquíssimos especialistas da área? “Nim”! Se até há alguns anos atrás apenas esses especialistas conseguiam ter acesso aos raros manuscritos e aos resultados das investigações realizadas em meios académicos, hoje, com a quantidade de informação publicada em livro e disponível na internet, qualquer músico pode, com algum trabalho, ter acesso a tudo o que necessita para constituir um reportório minimamente coerente. Mas também é verdade que a ausência de informação básica ao nível histórico, musicológico e organológico leva muito facilmente a resultados autenticamente caricaturais e anedóticos.
A música que se ouve nas feiras poderia ser uma bela introdução ao riquíssimo reportório medieval e uma motivação para a descoberta, por parte do público, deste universo. Podia contribuir para aumentar o número de interessados em assistir a concertos e descobrir os registos discográficos produzidos ao longo de décadas, dando uma preciosa ajuda ao desenvolvimento da nossa cultura musical e, consequentemente, dos nossos músicos. Bastaria para isso que os grupos tivessem uma preocupação em apresentar o reportório adequado, com instrumentações e interpretações minimamente honestas, e talvez até com sessões com alguma preocupação didática, como vemos frequentemente em relação, por exemplo, ao armamento e às técnicas de luta. E nem sequer o argumento da “falta de impacto” colhe: também a nossa experiência mostra que as pessoas se aproximam mais facilmente, e com um interesse mais genuíno, de um grupo tocando em qualquer recanto verdadeiras réplicas de instrumentos medievais, mesmo que menos barulhentos, do que das já estafadas gaitas e tambores.
Mas em vez disto assistimos, nos últimos anos, à invenção e proliferação de um estilo que não é mais do que um pretenso rock disfarçado de música bárbara, em que as guitarras elétricas são substituídas pelas gaitas de fole mas em que tudo o resto, até a pose, permanece rockeira. E em que — e isso é o mais lamentável — raramente o reportório, pelos menos, tem alguma coisa a ver com a Idade Média. Poder-se-á dizer que é uma opção, que tem o direito de existir como qualquer outra. Naturalmente que sim. Só que esta opção invadiu tudo, apoderou-se de (quase) todos os grupos, e de repente passou a ser “a” música medieval. E de uma forma tão simples se anulam décadas de trabalho. Da mesma forma que os mass media escondem o que de bom se faz na cultura e aplicam esta mesma palavra aos piores subprodutos que promovem diariamente. Porque, na era da comunicação, o que não passa na televisão não existe.
Excelente artigo que toca num ponto essencial das feiras “medievais” – a falta de rigor (que passa por tudo, desde as roupas até à música), ainda que existam saudáveis excepções (raras, muito raras).
É um trabalho dificil este de tentar fazer o melhor trabalho possível e rigoroso, mas fica com a certeza de que vocês fazem um excelente trabalho! 😉
Até que enfim, alguém tem a coragem de pôr o dedo na ferida. Músicas, há muitas, contrafacções, ainda mais. Ainda podiam ser réplicas honestas, com alguns laivos de aproximação histórica, mas nem tal. Há para todos os gostos e consumidores. Se o cardápio cultural de oferta é uma amalgama de oportunismo sustentável, com sabores a medieval ou antigo, como manda o figurino, então estamos perante a mais genuína crise sistémica de escolhas, de aferições de qualidade e de falta de rigor no palato cultural. Venha a ASAE, multar esta gente responsável, pelo mau serviço que prestam, vendendo gato por lebre. O consumidor cultural, pensa que comprou qualidade, mas não se iluda, aquilo que parece, não é. No entanto, aconselhando-se com quem conhece, ou pesquisando na internet, poderá encetar uma viagem à música medieval, antiga, com seu subestrato histórico, aprendendo deste modo a livrar-se das falsas propostas.
Este artigo coloca a “nú” a realidade de muitas realizações “medievais” (ou ditas como tal) que se realizam no nosso Pais.
Outro ponto interessante de se referir é a quase impossibilidade, por parte de organizações que pretendem levar a história e cultura aos cidadãos, de colocarem em prática acções mais aproximadas da realidade histórica pelo simples motivo que as entidades (públicas pagantes) “assustam-se” com o possível “menos brilhante e vistoso” impacto que a “normalidade animativa” tem imposto.
É pena que nem todos os elementos destas iniciativas tenham a consciência e a cultura desenvolvida por pessoas que formam o grupo Jogralesca, por exemplo, em que desde a indumentária aos instrumentos, passando (é claro) pela música são alvo de estudo cuidado e, sobretudo, construção própria (de réplicas musicais).
Continuamos no País do “Pão e Circo” em que não se tenta melhorar “o circo” (pois também os havia de qualidade, bem animados e autênticos) – o eterno medo da “mudança” que atrasa, paralisa e que vai, por este andar, “extreminar” Portugal.
Porém, um “grupo de teimosos” continua a acreditar que é possível fazer sons, recriação e cultura, de uma forma mais genuina e acessível a todos os cidadãos.
Caro amigo
Não posso deixar de concordar com a tua bela e circunstanciada opinião.
Com efeito, referes o belo e saudoso Festival Internacional de Musica Antiga, que tanto trabalho me deu, desde o seu inicio e até ao seu “enterro”. Bem me lembro das várias observações e conversas com o seu Director artístico Dr. Luis Leal da F Gulbenkian.
Mesmo fora do contexto do Festival, organizei muitos concertos de música Medieval e Renascentista e Barroca, alguns até contigo.
Na realidade fui um fã das conhecidas Ceias Medievais, e das Feiras Medievais para
óbidos, por falta de dinheiro, nunca consegui colocar nenhuma de pé ! Por isso quando os dinheiros começaram a abundar e a nova câmara montou os “novos” eventos, fiquei sempre na expectativa, do controlo e rigôr histórico, tanto mais que sendo o actual presidente académico em história, logo pensei estar essa situação salvaguardada.
Fiquei entusiasmado quando em 2001 num congresso da APVT, assisti a um jantar memorável no castelo da S Maria da Feira, uma encenação medieval muito rigorosa e logo pensei isto era bom para Óbidos !
Para mais não dizer….. acrescento que este ano , em óbidos, já havia na bilheteira um cartaz bem explicativo de como as pessoas se poderiam trajar.
e também para mais não dizer refiro que vi este ano , um visitante, vestido de soldado da Legião Romana , para entrar na Feira Medieval. Ora como estávamos em Agosto, não deduzi tratar-se de brincadeira de carnaval !
agora sim está tudo dito
luis manuel garcia
Bem dito, Quitó! Concordo em todos os pontos com a sua opinião, muito bem fondamentada e expressa.
Espero que o seu texto poderá ajudar responsáveis pela organização de feiras medievais em se lembrar de convidar – também – músicos procurando restituir músicas da era medieval. Veremos então qual será a adesão popular. É simpático de ver a gente jovém se divertir, abanando o capacete ao som do “gótico-céltico”. Compreendo que esta componente festiva seja um aspecto importante pela adesão de muitos. A gente vai numa feira nedieval para que seja uma festa. Mas aposto que muitas pessoas, inclusive entre os jovens, também apreciariam muito uma música mais fiel à verdade histórica e, porque não, um tanto mais elaborada.